quarta-feira, 24 de junho de 2009

Caso de amor

Por Manoel de Barros 

Uma estrada é deserta por dois motivos: por abandono ou por desprezo. Esta que eu ando agora é por abandono. Chega que os espinheiros a estão abafando pelas margens. Esta estrada melhora muito de eu ir sozinho nela. Eu ando por aqui desde pequeno. E sinto que ela bota sentido em mim. Eu acho que ela manja que eu fui para a escola e estou voltando agora para revê-la. Ela não tem indiferença pelo meu passado. Eu sinto mesmo que ela me reconhece agora, tantos anos depois. Eu sinto que ela melhora de eu ir sozinho sobre seu corpo. De minha parte eu achei ela bem acabadinha. Sobre suas pedras agora raramente um cavalo passeia. E quando vem um, ela o segura com carinho. Eu sinto mesmo hoje que a estrada é carente de pessoas e de bichos. Emas passavam sempre por ela esvoaçantes. Bando de caititus a atravessam para ver o rio do outro lado. Eu estou imaginando que a estrada pensa que eu também sou como ela: uma coisa bem esquecida. Pode ser. Nem cachorro passa mais por nós. Mas eu ensino para ela como se deve comportar na solidão. Eu falo: deixe meu amor, tudo vai acabar. Numa boa: a gente vai desaparecendo igual quando Carlitos vai desaparecendo no fim de uma estrada... Deixe, deixe meu amor.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Demora

Repara, aqui neste lugar nos beijamos pela primeira vez.
Hoje, o encontro é de abraço. Então, me abraça forte e demora. Demora o tempo de eu esquecer aquele beijo.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Katerina

Das coisas que mais gosto,
estar com a menina Katerina
em seu templo de beleza afrodisíaca.
Penso que vem, já foi
estudar filosofia.
De estrela entende tudo,
aprendeu numa viagem à Índia (segredo meu e dela esta viagem).
Diz que o avô era inventor
e ela foi bem inventada.
Da vida não tem medo
nem quando a vida a espezinha.
Escreve crônicas,
faz magias,
atravessa oceanos.
Já foi ter com defuntos em Módena
em busca de uma lira.
Acorda cedo,
dá leite ao filho,
vai ao Marrocos,
vem pra Bahia.
E volta
para o bairro da Liberdade.
Arrasta homens,
arrasa leitos
E rompe.
Rompe a polaca
com tudo que é médio.
Rompe a polaca
com tudo que é tédio.
A revolução virá,
sei que ela virá,
disse o camarada poeta.
Ela é tão bonita
Ela é tão bonita
e atende pelo nome
Katerina.

domingo, 14 de junho de 2009

Deixe

Deixe-me quieto, amor.
Este veneno injetado na veia circula sob alta pressão. Acontece de me deixar ligado, acontece de me deixar triste, acontece de me deixar em silêncio. Aqui neste ambiente, palavra não bole. Palavra passeia e se embriaga de sentidos que querem ficar dentro.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Sensibilidade

Todo cavalo é selvagem e arisco quando mãos inseguras o tocam.

Clarice Lispector

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Cabelo curto

Perguntou-me por que eu trazia o cabelo tão curto. Respondi com algumas mentiras.
Meu cabelo curto é para afastar homem machista. É um jeito de dizer, sem ter dito, que ele só poderá agarrar meus cabelos pela nuca e arrastá-los somente na curta medida entre minha boca e a sua.