segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Racismo não é brincadeira

Quando eu tinha uns oito anos, mudou para a  casa que ficava logo abaixo da minha uma meia parente, racista. A diversão dela era nos chamar de macacos. Seu alvo predileto, meu irmão, um menino vaidoso, que se defendia dos ataques “levando na brincadeira”... Ao perceber que eu me ofendia ela começou a dirigir seus ataques ao meu pai, de quem não desgrudava. Ele saía a trabalhar e eu ficava na janela, esperando seu aceno e acompanhando sua silhueta a sumir na rua. Ela, a racista, lá de seu quintal olhava para cima e dizia“o macaco já foi trabalhar?” Eu engolia o ódio e ia chorar lá dentro. Um dia, num encontro de família eu não aguentei e parti para cima gritando que meu pai não era macaco, que macaca era ela, uma sagüi magrela e sem cor. Ela se indignou, como é que podia uma menininha petulante e mal educada levantar a voz com ela, por uma brincadeira? Batata, fiquei de castigo.

Enquanto eu crescia, cada vez mais negra, meu irmão cada vez mais negava sua negritude. Dizia que tinha puxado a minha mãe, uma mulher branca e nordestina. As piadas racistas em casa eram fartas, os parentes sempre comentando que meu pai era esperto, clareou a raça casando com uma branca, porque “Você sabe né? Negão adora uma loira”. Hoje penso que a dificuldade do meu irmão em lidar com sua raça vem desse tempo. Negar-se negro foi a maneira que encontrou de se proteger do racismo. Preferiu a imitação ao revide, como estratégia de integração à massa racista que nos cercava. 

Não era só a infeliz do andar de baixo que me atazanava a vida, eram os amigos do meu irmão que passavam na frente da casa da Diana, minha vizinha, também negra, e perguntavam “Diana, quanto é o quilo do beiço?”; era uma folha mimeografada que circulava na escola com piadas que nos comparavam ao que existia de pior. Uma náusea a cada linha. Era meu primo apanhando na porta da escola porque chegou atrasado do trampo, tentou pular o portão e a polícia concluiu que era bandido. Era a Vivian, outra prima querida, preta, que o filho realmente virou bandido... Era muita fita.

Na adolescência tive um namoradinho loiro, apaixonado por mim. O amor durou até ele me apresentar aos amiguinhos do SENAI, por coincidência, onde meu irmão também estudava. De repente, “Eu gosto de você só como amiga”. De repente, ele de mãos dadas com uma menina branca, cabelos lisos e “traços finos”. Não tinha nariz de tomada, nem cara de baiana, como eu. Baiana e baiano era como os paulistas racistas gostavam de se referir as pessoas nordestinas para inferiorizá-las. Era das coisas que eu mais ouvia.

Sentir-me desprezível me fez uma marca, abriu caminho para abusos e violências que só fui entender bem mais tarde. Comecei a compreender o quanto todas essas experiências minaram minha auto-estima com mais de trinta. Hoje, quando me afirmo negra tem sempre uma branca por perto que diz “Mas você não é negra, vai! Você é morena. Você nunca vai saber o que uma negra passa...” São as mesmas que se dizem amigas de suas empregadas domésticas, a quem pagam trocados para não precisarem limpar a própria merda. 

Ser uma negra de pele clara me coloca em vantagem social em muitas situações, pois o racismo contra as pessoas negras se faz pelo fenótipo. Quanto mais melanina, maior a discriminação. Ter a pele clara, no entanto, não apaga as violências que sofri, nem o sofrimento de ver sofrer outros pretos e pretas que amo e os que nem conheço. Não me poupa dos estereótipos, da objetificação sexual, nem de minha própria história. Colocar-nos um rótulo, classificar nossas experiências, explicar para gente os limites entre racismo e “só uma brincadeirinha”, “Ah deixa de ser chata, vai", coisa de branco. Sim, eu nunca vou saber o que uma mulher de pele preta passa, nem ela o que passa a mim, porque nossas experiências com o racismo são singulares e intransferíveis. Nos sabemos apenas mulheres negras.