segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Des-porto

A cidade se comporta qual amante que pressente o abandono. Onde era ausência, agora só ternuras. Amigos silenciosos se pronunciam, botecos legais se multiplicam e veja só, faz até calor!
A cidade quer plantar em mim uma saudade e não obstante atinge seu objetivo. Fisga-me no cheiro do parque em dia de chuva, em sua festa literária, no caminhar tranqüilo por suas ruas, nos loucos que conto nos dedos, na música dos meus manos e das minhas minas.
A cidade não me sabe e eu pouco sei dela. Estamos naquele momento crucial, que não permite artifícios. Tempo de "ramilonga", hora de despedida.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Madureza

Quando meu senhor puxou-me os cabelos, tinha a aparência moribunda, roupa puída, cheiro de gente. Ergueu minha cabeça como colhesse uma fruta podre entre a folhagem e ordenou:
- Olha a vida, menina bonita! Repara nos tecidos de nenhuma cor que fiei para cobrir teu corpinho!
Meu mestre não viu que eu estava morta? E a trouxa de tecidos que me saía da boca?
Foi soltar a cabeça e começar a fuga de palavras de todo jeito, cheiro e sabor. Viscosas, ásperas, ácidas, ternas, notívagas, bêbadas, viris, esquálidas, palavras vivas. E aquela parte podre da fruta foi rolando pra longe de seu coturno, entre folhas e moscas, só curtindo o movimento.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Estilhaço

Linda, só se for qual o diabo.
Doce, só para encontrar a medida do áspero.
Você há de seguir meu rastro
Eu hei de deixar nele nenhuma pista.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Bicho meu

Gosto da diaba
De seus hábitos de lesma
Vagarosa e úmida
Onde passa deixa rastro
E dúvida

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Uma noite no Hades

Mortos, comigo, eram quatro na fila, esperando para pegar as flores do funeral. As minhas, tulipas azuis.
Tínhamos pressa, cada qual com seu motivo. Um rapaz ia ser enterrado em Santos e tinha medo de pegar trânsito na descida da serra. A moça, atrás dele, deu-lhe um tapinha nas costas e disse bem irônica:
-Fica frio que teus amigos te esperam!
Ela também não estava muito tranqüila, não. A nóia coletiva era o processo de putrefação. Mais um pouco a gente ia começar a feder. E aí? Quem aguenta?
Eu me cheirava todo tempo e olhava as tulipas. Tive um golpe de vida, de repente. Será que já vi tulipas desta cor antes? Antes quando? Uma tulipa vermelha dançou em minha memória, mas logo pareceu mais absurda que aquelas que estavam a minha frente.
Na fila, os assuntinhos eram todos os mesmos de fila viva, com pequenas adaptações ao contexto. Onde você vai ser enterrado? Sua família comprou jazigo? Ai, eu tenho medo de cremação... Diz que fede!
Feder, a neura!
- Vai logo moço! Será o benedito que até depois de morto tenho que lidar com essa raça de funcionário público?
- Êpa, êpa, êpa! Qué escrachá vai escrachá no seu velório, cadáver!
- Cadáver? Você vai ver o que o cadáver vai fazer com sua cara, seu verme!
E a moça, aquela irônica, tentava apaziguar:
-Gente, pra que essa mesquinharia? Daqui a pouco tá todo mundo comendo capim pela raiz, gente!
Não adiantou nada. Os defuntos se pegaram e foi perna prum lado, olho pro outro e coisa e pedaço de coisa que escorria... Eu, hein? Aproveitei o rolo para pegar minhas tulipas e fui!
Que alívio chegar ao crematório e encontrar a galera toda ali!
Notei que minha blusa estava rasgada, sob a axila direita. Foda-se! Como disse minha colega, daqui a pouco vou virar comida de peixe.
Mas será que esse troço de cremar fede mesmo?

domingo, 26 de outubro de 2008

Sonho

Andávamos de carro por São Bernardo, cidade de minha infância. Você no banco do carona, eu atrás com as duas pequenas. No rádio, Raul Seixas: "Aquele teu chaveiro escrito love..." Ríamos da música, quando percebemos um pombo correio sobrevoando nosso carro. Abrimos as janelas, colocamos as cabeças para fora, sem muito acreditar no que víamos.As meninas davam aquelas gargalhadas de criança, encantadas com o pássaro.
- Você tá vendo isso? Perguntei.
- Tô vendo. Fui eu que mandei esta mensagem para você!
- Pra onde?
Acordei.

sábado, 25 de outubro de 2008

Partilha

Você acordou cedo e fez a mala em silêncio.
Saí da cama às 10h, como sempre. Por volta das duas, pus a mesa. Você pediu um delivery de comida chinesa. Seguíamos bem em nosso teatro do dia-a-dia, até que você inventou de colocar aquela fitinha dos Beatles. Pra quê, amor?
Debruçamos sobre a mesa de fórmica, sei lá por quanto tempo. Braços entrelaçados, lágrimas convulsivas. Fiz a patética pergunta:
- Quer que eu chame um mototáxi?
Você partiu. Daquele dia em diante foi um tal de passar noite acordada, pintando poemas de Pessoa nas paredes do quarto, incomodando amigos e uma vontade danada de morrer aos 20 anos.